Sobre espelhos e miopia social

Sep 28, 2010 09:46


Considerações preliminares:

Quando a Sociologia se mistura com a Filosofia, não se trata (ou não deveria tratar-se) de descrever o real com fidelidade, mas propor um trabalho imaginativo. Uma provocação, diria-se.

Cenário 1:

Uma das imagens do pós-vida elaboradas por David Eagleman em “Sum” propõe que, quando se morre, um dos estágios dessa experiência é perder as lembranças e todos os detalhes de que utilizávamos para compor nossa identidade. Esses detalhes são recuperados gradativamente após a morte, numa reconstituição do Eu que terá conseqüências dramáticas. Neste cenário, parte-se da suposição de que “todos são multi-facetados, e já que vivemos dentro de nossas cabeças, somos muito melhores em enxergar os outros do que a nós mesmos” (a ver a verdade sobre os outros mais do que sobre nós mesmos). Ao elogiar as boas qualidades e criticar os maus hábitos, “as perspectivas dos outros nos servem de guia durante a vida. Conhecemos-nos tão mal que sempre nos surpreendemos em como aparecemos numa foto, ou como soa nossa voz. A nossa existência acontece nos olhos, ouvidos e mãos dos outros com quem convivemos”. Os outros são como portadores de espelhos, os quais permitem que colecionemos informações, detalhes, pontos de vista a nosso próprio respeito. Sem tais espelhos, não somos capazes de nos conhecer, ou reconhecer.

Cenário 2:

Li recentemente no New York Times que um estudo elaborado pelo National Institutes of Health (EUA) aponta que 6.2 por cento dos norte-americanos sofre de distúrbio de personalidade narcisística, e dentro deste percentual encontram-se 9.4 por cento das pessoas entre 20 e 29 anos.

Aquilo que Jean Twenge e W. Keith Campbell denominam “Epidemia do Narcisismo” representa um processo de reavaliação do self o qual demonstra algo como uma “inflação de auto-estima”. As autores citam dados de 1950 em que 12% de milhares de adolescentes inquiridos sobre se consideravam a si mesmos uma “pessoa importante” responderam que ‘sim’. No fim dos anos 80, ao questionarem outros milhares de adolescentes, 80% das meninas e 77% dos meninos responderam que ‘sim’.

Sentir-se insignificante não somente é menos comum como é percebido como auto-flagelo, distúrbio psicológico ou comportamento inaceitável num mundo que exige que elevada auto-estima e boas habilidades em ‘marketing pessoal’ sejam traços indispensáveis à uma existência digna e bem sucedida.

Cenário 3:

Num breve comentário sobre  “a afirmação da identidade, tarefa tão difícil em um tempo em que todo mundo dirige seu próprio reality show e cada vez há mais protagonistas do que espectadores”, Arnaldo Branco afirma que tem uma teoria de que “(...) hoje as pessoas não apenas gostam das coisas, elas são as coisas de que gostam. Ninguém se sente mais definido pelo que é, ou pelo que faz, mas pelo que curte.”

Esse diagnóstico é bem próximo daquele de Zygmunt Bauman (e muitos outros, aliás) que percebe a transição da identidade definida pelo trabalho para um processo de constituição do self baseado no consumo.

Essa bricolagem dos elementos do gosto na conformação da auto-imagem serve como um cartão de visita que o sujeito elabora para si. Por um lado serve a uma estratégia de distinção, mas por outro lado, arrisca-se em constituir um projeto fraudulento, ou no mínimo, equivocado.

Cenário 4:

O que acontece quando o Outro não é mais peça-chave na conformação de nossa auto-imagem? Quando não há mais aquele que nos aponta o espelho e quando nossa própria opinião do que seja “Eu” é tomada como verdade superior?

A remoção radical do Outro imediatamente me remete à imagem de Robinson Crusoé - não na versão clássica, de Defoe, mas no experimento literário de Michel Tournier, onde o outro personifica não um objeto num campo, nem um outro sujeito além do eu, mas a própria estrutura que torna possível a percepção deste campo. Outrem exprime um mundo possível, um mundo que o Eu é incapaz de perceber. Constitui não apenas uma outra perspectiva (ponto de vista) de um mesmo objeto, mas um outro mundo possível e imperceptível ao Eu. Sem outrem, há o imediato perceptível; perde-se a virtualidade do possível.

“O efeito fundamental é a distinção de minha consciência e de seu objeto. Esta distinção decorre com efeito da estrutura de Outrem. Povoando o mundo de possibilidades, de fundos, de franjas, de transições, - inscrevendo a possibilidade de um mundo espantoso quando ainda não estou espantado ou então, ao contrário, a possibilidade de um mundo tranqüilizante quando, eu, me encontro realmente assustado com o mundo, - envolvendo sob outros aspectos o mesmo mundo que se mantém diferentemente desenvolvido diante de mim, - constituindo um conjunto de bolhas que contêm mundos possíveis:  eis o que é outrem.”

Algumas derivações:

O experimento Robinsoniano supõe que o isolamento insular provoca, com o tempo, o desaparecimento (ou ao menos a perda do efeito) da estrutura Outrem. Assim como a imagem de um pós-vida possível, quero usar aqui essa situação limite a fim de visualizar conseqüências radicais do cenário contemporâneo aqui diagnosticado.

A auto-estima compulsória, o narcisismo generalizado e a redução do efeito do Outro, a meu ver, colocam a possibilidade da constituição precária do self, se considerarmos o imaginário de Eagleman como uma metáfora do processo de socialização e constituição da identidade.

A experiência de Robinson na ilha, e a dúvida se ele seria capaz de recuperar a estrutura perdida nos anos de solidão, mesmo após o reencontro com outros homens, é comparada, por Deleuze, à “ilha interior” dos perversos, onde não há a ausência de outrem, mas a incapacidade do Eu em reconhecer tal estrutura. Pode-se viver sem outrem, mesmo que não em isolamento.

Ora, não é isso que se vê presente de maneira exemplar nas relações amorosas contemporâneas? Suas idealizações ainda românticas, mas seu descompasso crescente com a habilidade (cada vez menor) de conhecer o Outro? O declínio do erotismo em favor da sensualidade (e sensorialidade) narcísica?

A vida interior se expande e perdemos o Outro de vista. Este já não nos interessa - seja pela valorização excessiva do Eu e suas demandas, seja pela incompetência generalizada em apreender o que não é espelho - efeito máximo da socialização precária.

O narcisismo bloqueia a sociabilidade; a sociabilidade míope ignora a diferença (e mesmo quando a reconhece, a dispensa como irrelevante); e a indiferença alimenta o narcisismo. Não o egoísmo puro e simples, mas o aprisionamento do Eu na profundidade labiríntica de si mesmo.

“Neurose e psicose são a aventura da profundidade. A estrutura Outrem organiza a profundidade e pacifica-a”.

Na inflação da auto-estima, o aval do Outro é dispensado, é irrelevante. Porém, a auto-imagem que dispensa a intervenção do Outro é enganadora. Uma identidade que se define pela capacidade de consumir, que recolhe do mundo pequenas peças nas quais acredita reconhecer-se. Se ainda temos espelhos, estes espelhos são viciados e enviesados [“biased”]. Através do mosaico de gostos que acreditamos nos definir, apontamo-nos nossos espelhos para o Eu e não em direção ao Outro. Um mundo povoado por seres que não se vêem e não se mostram - no duplo sentido de que não se revelam e não revelam ao Outro.

Mas haveria ainda o que revelar? Como revelar o que se desconhece? E se soubéssemos o que revelar, ainda haveria expectadores?

Algumas referências:

Comentário sobre o Narcisismo Moderno no NY Times:
http://www.nytimes.com/2010/07/16/opinion/16brooks.html

“Sum” de David Eagleman:
http://tiny.cc/wm7g0

“Sexta-Feira, ou Os Limbos do Pacífico” de Michel Tournier:
http://tiny.cc/50xcw

Comentário de Arnaldo Branco:
http://www.revistazepereira.com.br/teoria-do-co-autor/

sociabilidade, self, identidade, narcisismo, Robinson Crusoé

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