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May 14, 2005 11:12



Desilusões

"A maioria das pessoas explica, de vez em quando, em tom lamentoso ou zangado, como se desiludiu.

O lamento sobre “o que me aconteceu”, ou sobre “o que me fizeram”é, assim, uma espécie de desabafo genérico sobre o estado caótico de um mundo em que aconteceram triliões de coisas que coisas que não eram supostas acontecer.

A zanga a que a seguir se chega dá conta da impotência que se sente quando se percebe que não se pode pôr tudo nos eixos ou, simplesmente, fazer com que os acontecimentos decorram, de acordo com as nossas expectativas.

Quando dizemos que nos desiludimos, ou que alguém nos desiludiu, estamos, implicitamente, a afirmar que, num primeiro momento, nos iludimos. Quer dizer que confundimos o nosso desejo com a realidade que nos era apresentada, que julgámos mal, que não fomos suficientemente atentos ou perspicazes

Mesmo quando percebemos que a desilusão só chega depois da ilusão, e que sobre as mil maneiras como nos podemos ir iludindo os outros pouco têm a dizer, normalmente zangamo-nos.

Muito.

Zangamo-nos com o sedutor que se aproximou parecendo oferecer-nos o mundo, e que afinal só nos queria cravar. Zangamo-nos com o chefe que parecia gostar tanto de nós, ou do nosso trabalho, e que, depois, não propôs a promoção ou o aumento. Zangamo-nos com os amigos, sempre tão disponíveis para programas de fim-de-semana mas que desapareceram quando se esteve doente.

Zangamo-nos com os filhos tão prometedores, tão inteligentes, que querem deixar de estudar e arranjar um trabalhinho independente.

E zangamo-nos com os negócios que falham, com as pessoas sérias e, afinal não eram, com os políticos que prometeram e não cumpriram, com a bolsa que desceu quando devia subir, Zangamo-nos, à falta de melhor com os pais, que não nos prepararam para este mundo, ou com a educação que tivemos, que nos fez acreditar numa margem de previsibilidade razoável sobre os comportamentos e intenções dos outros.

Zangamo-nos, em desespero de causa, com a vida que não é aquilo que a gente quer, ou com o Deus Nosso Senhor, que não nos liga nem satisfaz os nossos desejos.

Zangamo-nos porque nos desiludimos, e desiludimo-nos vociferando terríveis e definitivos “não esperava isso de ti”, sobretudo porque somos pessoas, o que quer dizer que misturamos o fora e o dentro, a realidade e a fantasia, as expectativas com as probabilidades.

Desiludimo-nos tanto mais quanto nos iludimos, e iludimo-nos tanto mais quanto achamos que nós é que sabemos, ou que temos razão.

Resta, por isso, decidir se vale a pena ter tanta razão, e continuar tão zangado e tão desiludido."

Isabel Leal
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