Ai ai

Mar 02, 2004 15:17

(Os eventos aqui descritos remontam à mais de 2 semanas. Só hoje decidi pôr isto online. Não foi editado.)

Ora hoje eu decidi ver televisão.

Grandeeeee erro. (E este vai ser um post longo, porque a raiva e a indignação e a perplexidade são grandes)

No programa da Luísa Castel-Branco, discutiram-se vários temas actuais: a Presidência da República, o aborto (*yawn*) e , claro, a coqueluche de todos os temas ditos actuais: a homossexualidade. Mas atenção!: a homossexualidade numa vertente de saber se a adopção por parte de casais homossexuais seria viável ou não. Isto tudo a propósito de uma determinada alegação do doutor Villas-Boas que dizia que a adopção de crianças por parte de homossexuais era contra-natura. Eu não tive o (des)prazer de ler o comunicado (hei-de cuscar), mas já se sabe que o senhor tem lá as suas razões para não gostar da ideia. É uma opinião. Admite-se.
Mas já lá vamos.
Felizmente os dois convidados (um homem e uma mulher) tinham ideias contrárias. A mulher dizi que faltava a triangulação nessas relações: basicamente, com pais homossexuais, a pessoa não teria direito a um modelo presente do sexo oposto ao dos pais. O homem dizia, penso eu que com razão, que isto é tudo uma falsa questão: em vez de falarmos de todos estes conceitos psicológicos, nós não estamos a garantir que as crianças tenham a oportunidade de se queixar disso. Não, elas queixam-se das condições miseráveis em que (sobre)vivem, de não terem comida, água, de não terem condições básicas de higiene. Porque há crianças que, neste século XXI, oh-tão-civilizado vivem pior que cães. E certamente estas crianças estavam-se a danar para a orientação sexual dos pais. O que elas mais querem é amor e um tecto e água e comida. Coisas para viverem de forma decente (dá muito jeito).

Mas claro, falta a triangulação. Que me parece uma falsa questão. Se virmos bem, há uma muito maior crítica a casais homossexuais que pretendam adoptar do que uma pessoa, única, a querer adoptar. Ou seja, parece haver alguma forma de magia em 'famílias monoparentais', em que certamente não há triangulação nenhuma (há uma pessoa, uma autoridade, nada mais) que não existe nas 'famílias homossexuais' (onde, apesar dos pesares, existem duas pessoas, que, como pessoas distintas, têm concepções diferentes da vida, perspectivas diferentes, cognições diferentes). Chamem-me tolinho, mas se eu fosse criança e me dessem a escolher uma destas famílias, eu ia pelas famílias homossexuais. É que deve ser duro ter apenas uma pessoa a tomar conta de nós sem uma outra pessoa para contrabalancear, e corre-se o sério risco de essa pessoa se tornar o centro do universo.

Mas as famílias monoparentais recebem mais respeito da sociedade do que as famílias homossexuais.

Quando ouvimos falar de adopção por homossexuais, a primeira pergunta (ou advertência) que surge na mesa de discussão é: "Mas os filhos não vão ser homossexuais". Isto pressupõe que a homossexualidade é coisa má, ou no mínimo indesejável. É aquela coisa que hoje em dia se apelida por tolerância: "a gente deixa que eles se comportem assim, porque enfim, são tolinhos", mas não se pode deixar que a epidemia/loucura/pecado se dissemine. Como já dizia o outro, tolerância é para crianças e velhos.

O interveniente (homem) do programa bem tentou dar a entender a sua opinião, mas a Luísa cortou-o, dizendo que era opinião típica de homem, que as crianças seriam inadaptadas socialmente. Queria analisar vários pontos desta reacção:

1- Esta noção de que os homens têm opiniões liberais (e como ser liberal hoje em dia tomou um aspecto de loucura, de desafio de limites do senso comum) é falsa; aliás, eu sempre pensei que as mulheres fossem liberais e os homens conservadores. Não estou propriamente a ver mulheres conservadoras a lutar pelo feminismo. Há de tudo, digo eu, e penso que ainda bem.

2 - As crianças serem inadaptadas socialmente é um problema real, que, infelizmente, não acontece apenas com crianças com pais homossexuais. Acontece com crianças com óculos, acontece com crianças negras, acontece com crianças com deficiências, acontece com crianças normais, acontece com todas. O 'bullying' é hoje em dia um facto conhecido dos recreios de escola. Acontece. O facto da criança ter uma característica diferente da maioria só é um factor que garante uma possível maior propensão a ser vítima de chacota. Porque de resto, todos fomos vítimas de 'bullying'; os 'bullies', esses ainda se encontram nos liceus à espera da próxima vítima. E francamente, se todos seguíssemos esta lógica, viveriamos numa sociedade com escolas para negros, escola para chineses, escola para pessoas com sobrancelhas mais espessas, escolas para pessoas canhotas... hello?!? o conceito de escola inclusiva é familiar? É que escola não é apenas aprender o ABC ou que 2 x 2 = 4; escola é um dos locais primordiais de socialização. É onde aprendemos que, não obstante as nossas diferenças, não somos assim tão diferentes (parece cliché, é cliché, mas é oh-tão-verdade).

Não queria deixar de salientar que a Luísa Castel-Branco entrevistou o presidente da Opus Gay a semana passada. Numa semana ela passou de suposta "defensora da diferença" para uma conservadora que o Bush colocaria no seu pedestal.

Não é o facto da opinião dela ser diferente da minha que me irrita; é o fundamentalismo com que as pessoas defendem as suas crenças que me indigna. "Isto é assim, porque é assim e mais nada!" Eu não consigo pactuar com este tipo de infantilidades. Discordem, lutem por aquilo que acreditam, digam que não, demonstrem a vossa opinião, mas por favor!, não recorram a fundamentalismos. Não me digam que uma coisa é assim porque é assim e mais nada! Dêem-me exemplos da vida quotidiana, digam por que experiências passaram para chegarem a essas conclusões! Eu odeio fundamentalismos, odeio! E vou dizer porquê: porque com fundamentalismos, nunca chegamos a lado nenhum.

E depois há a hipocrisia que dirige todo este discurso. A nossa sociedade é dita muito liberal, muito civilizada, muito educada, mas eu digo: somos mais atrasados do que uma tribo qualquer perdida na floresta densa da Amazônia. Porque esses membros dessa tribo podem pintar-se de verde, caçar, fazer uga-uga, apanhar banhos de sol, mas pessoalmente, acredito que têm um maior sentido de solidariedade que nós. Se um deles morre, o grupo chora e faz luto. Se uma pessoa morre na nossa sociedade, haverá aqueles que fazem luto, mas que no interior riem dessa morte (é menos um no caminho do poder, da fama, do estrelato, whatever. É menos um).

Já estou como a canção da Rita Lee: "Eu quero ser índio/Tomar banhos de sol, banhos de sol..."

Depois, há aquela realidade que muitos parecem ignorar, embora vivamos cercados dela: a sociedade ocidental está hiper-mecanizada. Existem tecnologias que permitem hoje aumentar a fertilidade, fazer inseminação artificial. Deuses, se não funcionar, as pessoas contratam uma barriga de aluguer (apesar dos constrangimentos éticos, mas as pessoas fazem isso. É real, acontece). Agora, digam-me se o meu raciocínio é maluco (ahahahahah): um casal, heterossexual, tem a possibilidade de aumentar a sua fertilidade ou adoptar uma criança. Qual é que eles escolhem?
Alguém acredita seriamente que a esmagadora maioria das pessoas, nestas condições iria optar por adoptar? Primeiro, o processo é demorado como tudo. Depois, parece haver algo mais visceral, aquela lógica do "não é sangue do meu sangue". Visceral coisa nenhuma, é mesmo preconceito das pessoas, desta educaçãozinha tão humana, que nos faz pensar nas outras pessoas como objectos. Pai é aquele que dá de comer, que ensina, que forma, que educa. Não é aquele que tem sexo de 3 minutos e um orgasmo de meio segundo. Pai é aquele que tá lá a ver o filho crescer, para levar ao dentista, brincar e zangar-se. Pai é aquele que nos permite o desenvolvimento.
Mas as pessoas não pensam assim (acho eu). Entre ter um filho "mais seu", com os seus genes, e um "filho menos seu", com o sangue de outro que nem se sabe quem é, o casal escolhe o "mais seu". Não sei se é natural esta forma de pensamento, se tem alguma forma de aprendizagem cultural por detrás (eu acho que sim). Mas a maioria escolhe isso. E se não der pelo método tradicional (3 minutos de sexo e orgasmo de meio segundo), tenta-se a inseminação artificial ou barriga de aluguer. As pessoas fazem isso, só não admitem.
Por outro lado, as lésbicas também têm 'sorte', porque uma pode ficar grávida, é só preciso esperma. Isso (infelizmente) há muito bom (?) amigo que dá, e o método de inserir a coisa até é fácil, nomeadamente caseiro. Pessoalmente não concordo com isto, porque neste caso não há triangulação, há quadrangulação: o dador do esperma é óbvio que vai ter curiosidade em saber do 'filho'; é primal, é natural, é curiosidade humana e algo instintivo. Ou seja, temos as lésbicas, o dador e o/a companheira. É muita pessoa para uma criança só.

Peca-se por falta, peca-se por excesso.

O que me leva a afirmar que, teoricamente, só mesmo os homossexuais masculinos é que têm a possibilidade de adoptar. Existem métodos mais escabrosos de obter uma criança (se não soubermos quais, a TVI ensina). Mas a maioria das pessoas ainda são decentes o suficiente para não alinhar nessas coisas inomináveis. Então, temos dois homens, que não se podem reproduzir. Temos milhões de crianças em condições paupérrimas em orfanatos (os que têm 'sorte'), nas ruas (os que têm 'azar'). De um lado temos pessoas a querer dar um tecto, comida, bebida e educação a uma (ou várias) crianças. Do outro lado, temos um sistema de alojamento de crianças que provavelmente será o único sistema que estas crianças conhecerão em toda a sua vida. Porque a maioria destas crianças nunca será adoptada. Muitas destas crianças têm doenças, algumas já são velhas, outras já pelo que sofreram são inadaptadas. Contudo, há pessoas que as querem adoptar. E contudo, não querem deixar que sejam adoptadas.

Porque é contra-natura.

Ainda esta semana li uma entrevista a um biólogo marinho no New York Times. Ele falou de um casal de pinguins homossexuais, que são dos casais com um relacionamento mais estável do zoo. Os tratadores deram um ovo para que esses pinguins o chocassem. O ovo chocou, a cria nasceu, os pinguins tomaram conta dela, até que a cria, tornada pinguim adulto, saiu do ninhos dos 'pais'. E não é que correu tudo bem? A ideia actual é de que os animais homossexuais servem realmente um papel importante no desenvolvimento e manutenção da espécie, pois permitem que as crias sobrevivam quando estão sem pai. Um casal heterossexual tá mais interessado em criar as suas crias do que se preocupar com as dos outros. É triste, mas parece que é assim. É como aprendi em Etologia: uma leoa (e quem diz leoa, diz outro animal) pode ficar para tia, sem ter filhos próprios, porque ao tomar conta dos sobrinhos, ela está a contribuir para a sobrevivência da espécie!

Não parece assim tão contra-natura, pois não?
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