Roderich, Elizaveta e Gilbert (c) Himaruya Hidekaz
Eu morri em um acidente há dois dias.
Irreconhecível eu estava quando me tiraram das ferragens. Eu tentava respirar, mas tudo que inalava era fumaça. Escura e venenosa. E meus pulmões desistiram. Eu tentava manter os olhos abertos atrás do meu anjo. Mas tudo que via era uma claridão intensa. Eu não sabia se os tons de vermelho que ali consistiam era do meu sangue ou da chama ardendo. E minhas palpébras fecharam. Eu tentava gritar. Pela minha vida, por Elizaveta, por Gilbert.
E os últimos resquicios de vida foram embora à medida que meu coração desistia de continuar batendo.
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Os olhos dela estavam vermelhos e inchados. E nestes mesmos olhos, havia uma ternura. Mesmo que esta ternura fosse para um cádaver disforme. O único som ali ouvido era de seus soluços. Até que todo o silêncio temporário era interrompido por maus dizeres em um bom e gutural alemão. Gilbert gritava, até implorava para que qualquer um chegasse até ele e o dissesse que todo aquele cenário era mentira, que eu levantaria do meu caixão como esperava.
Ele não foi atendido.
Então o silêncio ensurdecedor voltava junto com as lágrimas de Elizaveta. Ela rezava para que tivesse mais uma chance, uma única chance, para dizer que me amava. Não para um cádaver. Mas para mim.
Ela também nunca foi atendida.
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Eu morri em um acidente há três meses.
Queimaram meu restos até que nada mais restasse.
Irônico pensar que o fogo me consumiria não só uma, mas duas vezes. E as cinzas que um dia já me foram preciosas como meu corpo eram lançadas do topo de Großglockner. Agora eu era o nada, levado pelo vento para lugar nenhum.Todos meus dizeres e pensamentos de quem eu já fui um dia estavam guardados junto às minhas partituras. Que nunca mais foram folheadas. Assim como meu piano nunca mais foi tocado.
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Gilbert girava uma faca entre os dedos. Às vezes ela escorregaria de seu controle e a cor do sangue tingiria sua pele. O seu machucado doíria bem menos do que esperava, mesmo quando suas lágrimas salgadas tocavam no corte exposto. Sussurraria para si mesmo que nada doeria tanto quanto aquelas cinzas. As minhas cinzas de nada. E tudo relacionado a elas ou a mim eram engolidas garganta abaixo tal como a cerveja de gosto amargo.
Elizaveta movia-se inquietamente nos lençóis. Sonhando com o primogênito que um dia teríamos em seus braços. Na manhã seguinte, nem se lembraria com o que havia sonhado.
Algumas tardes, um faria companhia ao outro. E juntos assistiriam vídeos caseiros nossos. Ririam de maneira trágica a cada momento dividido na tela por nós três. E Roderich viraria quase que um mantra nas próximas horas.
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Eu morri em um acidente há quatro anos.
Meu piano mesmo que intocado, permanecia impecável. Poucos tomavam seu tempo em mencionar meu nome e aqueles que o faziam sempre se referiam à Herr Edelstein. Este nome caracterizado com a frieza da formalidade que um dia tive tanta questão de me entrelaçar. Tal como minhas lembranças, estavam fadadas ao esquecimento. Porque o defunto que virou cinzas não era nada mais que um estranho. A cor das paredes, da casa que antes chamava de lar, já havia começado a desbotar.
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A porta rangia ao ser aberta por Elizaveta. E o piso, por sua vez, rangia ao ser pisado por Gilbert. A janela era aberta trazendo a casa o frescor e raios solares que há muito não via. Qualquer um poderia apontar o indicador e dizer que aquela casa, era definitivamente de um tolo aristocrata morto com todas as coisas tolas que chamava de posse e o ar de luxuosidade empregada nelas. A luxúria e o status foram substituídas pela ferrugem e poeira.
Fotografias antigas eram passadas uma por uma pelos delicados dedos da minha húngara até que esta terminava de ver todas e pensava alto em quando fui seu amado. Caminhando pelos corredores até a sala de conferências, meu prussiano perguntava o que eu faria agora. O silêncio foi sua resposta enquanto Elizaveta se juntava à sua companhia para observar todos os meus esforços gravados nas paredes. Gilbert deixara o hábito de pronunciar maus dizeres, que em vida tanto me esforcei para ajudá-lo a evitar. Ele que dizia todo o tempo, acabou vendo suas palavras sujas serem limpas.
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Eu morri em um acidente há uma vida inteira atrás, pelo que parece.
Faz uma década, ou duas ou três.
Meu destino é como uma impossibilidade. Atrelaçado a meras questões terrenas; humanas. Tais como aqueles que mais prezo.
A minha amada tinha a cintura entrelaçada pelos braços do meu amado.
Enquanto passavam pela estrada que foi o cenário do fim de minha vida. E a travessia foi quase inaudível.
Diferente de mim, de meu corpo e de minha memória. Meu amor mantinha-se bastante vivo. E parecia ser o protagonista, do concerto que foi minha vida, que se recusou a deixar o palco mesmo quando as luzes foram apagadas e as cortinas fechadas.
-x-
Inspirada na música "Passage" de Vienna Teng. Não tenho muito a dizer quanto à isso, além de que foi mais um experimento do que qualquer outra coisa. E que matar um dos teus personagem favoritos na primeira vez em que o escreve só pode ser um amor questionável, eu sei.