Aceitei um envelope fechado e com ele dei por pagos os meus sonhos. Ando com medo. Nunca me convenceram as alquimias.
Tu traíste-me. Mas não tens culpa. Porque o que condiciona o teu comportamento e em ultima análise o que te distingue enquanto pessoa são apenas duas coisa: As tuas experiências passadas e o teu património genético.
Se naquela altura vacilaste (chamemos-lhe assim, vacilar) e foi porque as tuas células o ditaram, não tens culpa.
Ou então, foi a educação que tiveste, aliada àquela experiência aos 6 anos de idade na qual o teu pai te deixou 30 minutos sozinha na escola à espera dele. Ficaste sozinha no átrio a experienciar um sentimento de abandono tão brutal que te deixaria para sempre com a sensação que de que mais tarde ou mais cedo alguém te haveria de falhar daquela forma outra vez. Mais tarde, aprendeste a lidar com isso antecipando quase sempre esse sentimento e deixando no átrio os teus amantes antes que eles o fizessem. Não tens culpa.
Há um livro de Dostoievski chamado “Culpa e Castigo” no qual o personagem principal passa o tempo a fugir de um crime que cometeu, para no final se aperceber de que necessitava do castigo para se sentir perdoado por dentro.
Há outro, “O Processo” de Kafka, em que o tipo passa o tempo todo a tentar encontrar a explicação para o seu castigo.
Como vês é antinatural deixar um sem o outro. É difícil, deixa-nos apreensivos.
Há um outro livro, chamado Bíblia, no qual dois amantes vivem num paraíso de maçãs e serpentes até que gaja decide fraquejar (decide fraquejar…), o que por artes e manhas faz com que sejam recambiados para aqui, para onde vivemos nós, e por acaso, só por acaso, até somos descendentes deles.
Por isso, desculpa: não te vou culpar, isso far-me-ia sentir mal e num castigo a sério o carrasco não tem sentimentos. Tenho a certeza de que arranjas para ti mesma um castigo à medida da miséria que és. E depois, perdoar é um pouco arrogante, é estar por cima do outro, e estou certo de que nos tempos que correm a ti não te falta gente por cima .
Nós, o paraíso já não temos. E eu já não tenho gosto pelos livros. Talvez porque neste momento sinta que necessito de tempo para procurar o meu crime. A ti sugiro que procures um bom castigo. No final podemos discutir tudo isto juntos e trocar impressões desapaixonadas e distantes sobre a velha e poeirenta literatura do leste da Europa.