Jul 02, 2006 01:23
Não se trata apenas de uma questão de merchandising, ou de apelar ao sentimento do espectador. Trata-se de algo com cabimento, com paixão, com uma mensagem clara. Que não devemos responder aos acontecimentos traumatizantes do nosso passado com amargura, ressentimento. Que por pior que tenhamos estado no passado, por mais que nos tenhamos torturado a nós próprios, odiado, culpado … que pode existir um caminho para a salvação, mesmo que signifique pagar pelos erros cometidos anteriormente. Ou então casos em que se conheceu a pessoa errada no lugar errado. Ou um amor muito, muito forte, que nos torna igualmente fortes e, ironicamente, frágeis ao mesmo tempo; que nos faz esperar o tempo que for preciso, e mostrar todo esse amor enquanto esperamos. Assim é Rurouni Kenshin, a única série de animação japonesa que me conseguiu apaixonar, que falou directamente com a minha alma; sim, o Dragon Ball e outros com super-poderes também me obcecaram, mas não a nível de paixão. Kenshin é muito mais que isso. Kenshin é, de uma forma exagerada, uma demonstração de casos traumáticos em cada episódio, e como eventos do passado modificam as pessoas, tornando-as rancorosas. A espada é apenas um pretexto. Um meio de defesa. O que realmente se pretende é levar as pessoas a seguir outro caminho que não aquele, um caminho mais sensato. Isto vê-se, sobretudo, no que é conhecido como Kyoto Arc, que engloba a partida de Tokyo, o confronto com Shishio Makoto e o Juppongatana e o regresso a Tokyo. O chegar a um lugar que se torna, finalmente, após dez anos de procura interior, numa casa.
Dez anos é o período de tempo estereotipo de Nobuhiro Watsuki: Himura vagueou pelo Japão, sem rumo, torturado pelas memórias do seu passado sangrento e pelo fantasma de Tomoe durante dez anos; Sanosuke Sagara perdeu o seu mentor, Souzou Sagara, precisamente dez anos antes de sermos introduzidos ao personagem; Shishio Makoto foi vítima de uma tentativa brutal de assassínio dez anos antes de reaparecer, envolto em ligaduras, com um fervoroso plano de vingança contra aqueles que o traíram - o governo de Meiji; Soujirou Seta tinha oito anos quando conheceu Shishio Makoto, na acção presente tem dezoito; no momento em que conhecemos Anji, faz dez anos que perdeu parcialmente a fé na religião devido às perseguições budistas ocorridas no tempo da revolução; e, para finalizar a lista infindável de exemplos (embora ainda existam muitos mais), Yahiko tem dez anos, ou seja, nasceu em plena Revolução, quando o destino dos restantes personagens estava prestes a ser traçado… pode constituir assim um tipo qualquer de esperança, de renovação. Mas isso fica para depois.
Começando por um dos casos que mais me impressionou quando vi pela primeira vez: Sanosuke Sagara, Souzou Sagara e os Sekhioutai. Os Sekhioutai eram um exército que lutava a favor dos imperialistas (Meiji), pois via nos ideais imperialistas um futuro melhor para os camponeses japoneses, que, em pleno século XIX, ainda viviam em sistema feudal. Por qualquer razão, os imperialistas sempre negaram o apoio dos Sekhioutai - embora usufruíssem dele, claro. Contudo, para o demonstrar à população, consideraram os Sekhioutai traidores e inimigos da nação, perseguiram-nos e executaram-nos sem piedade. A cabeça do líder do grupo, o capitão Souzou Sagara , foi exposta em praça pública para demonstrar ao povo o que acontecia aos que traíam o governo. Até aqui, a história é verídica. Sei ainda que o que serviu de “gota de água” entre Sagara e os Sekhioutai foi um caso qualquer com as rações de arroz. Souzou Sagara foi perdoado muitos, muitos anos após a sua morte. Onde entra a ficção? Aqui: no enredo da série, Sanosuke é um discípulo afincado de Sagara, vendo nele um modelo a seguir, bebendo todas as suas palavras e tomando todas as suas acções como correctas. Sagara era para Sanosuke um verdadeiro mentor. Para além de Sanosuke, existia também Tsukioka, cujo papel é tão secundário que se torna irrelevante. Ao ver a cabeça daquele que significava tudo para ele, Sanosuke adopta o nome Sagara como seu e declara guerra aberta ao governo de Meiji. O desgosto e a culpa por não ter podido fazer nada para salvar a vida daquele a quem amava tornou-o num homem amargo, violento, irresponsável, com maneiras pouco diplomáticas de resolver situações e afastando com ameaças qualquer pessoa que ameaçasse aproximar-se dele. Até ao confronto com Kenshin, em que este lhe diz que de certo que Souzou não se sentiria nada orgulhoso dele ao vê-lo levar um estilo de vida tão diferente daquilo que lhe tinha ensinado e a executar planos de vingança tão sanguinários, juntamente com Tsukioka. Para honrar a memória do seu capitão, Sanosuke muda de atitude para consigo e para com a vida - embora seja sempre o mais marginal do grupo. Até à viagem para Kyoto, nunca se tem bem a noção de quanto a nova família é importante para Sanosuke, de quanto ele depende dela para a reformação do seu carácter. É no episódio em que encontra Anji na floresta e em que, exausto, pensa em desistir da própria vida, que nos apercebemos disso. É no auge da sua desistência que lhe aparece a imagem vívida de Souzou Sagara, que lhe diz para desistir, que se desistir de treinar exaustivamente poupa a sua vida, que é o bem mais precioso. Sanosuke, no meio da emoção de rever o seu mentor, consegue recusar-se a obedecer. Diz que é impossível traduzir para palavras o desespero, o pânico e a impotência que sentiu ao ver a cabeça de Souzou exposta em público como traidor, traidor aquele que sempre esteve do lado dos imperialistas. O saber que podia ter tentado que as coisas não chegassem àquele ponto, mesmo sendo uma criança na altura. E que agora, dez anos depois, volta a encontrar-se na mesma situação: encontrou alguém que lhe deu um sentido completamente novo à vida, que lhe mostrou outro rumo; e que esse alguém se encontra no mesmo perigo de vida em que Souzou se encontrava dez anos atrás, e que se ele não tenta ajudá-lo e se ele vier a morrer, não é capaz de lidar com os mesmos sentimentos de raiva, não é capaz de passar pelo mesmo martírio (a aparição de personagens do passado também e frequente; geralmente, são estas aparições que dão convicção ao personagem em questão). O que me impressionou aqui foi quer o facto de parte da história ser real - a parte da traição - e a vida conturbada que Sanosuke levou durante dez anos e à qual se recusa firmemente a voltar, nem que para isso lhe custe a própria vida. Nós, seres humanos de carne e osso, raramente temos esse poder de convicção, de suar as estopinhas para não voltarmos a cair no nosso buraco negro. Devíamos conseguir erguer os nossos punhos, como Sanosuke, e lutar pela nossa estabilidade com unhas e dentes, não voltar a cair. Nem que para isso tenhamos que desobedecer àqueles que sempre amámos, àqueles por quem sempre nos guiámos. Mas falar é muito bonito. Pessoalmente também me deixo levar. Erguer os punhos e defender o que vim a construir não vai com o meu carácter. Talvez por ainda não ter construído nada que se visse. Este é, então, o primeiro caso de trauma psicológico entre os muitos.
Temos depois Anji, o monge “perverso”, como lhe chamam na tradução portuguesa (ainda me consigo lembrar!). Aqui está presente não só o trauma como uma crise de fé, uma perda de qualquer tipo de crenças. Não sei muito relativamente às perseguições budistas no tempo da Revolução, mas se realmente perseguiam monges ao ponto de incendiar os templos e sacrificar os seguidores, a crise a que Anji se submeteu é perfeitamente compreensível (e neste ponto nem duvido - Watsuki é extremamente realista quando se trata de evocar dados históricos, como o foi com Souzou Sagara, com Hajime Saito e os Shinsengumi). Dez anos antes de o conhecermos como membro do Juppongatana, Anji era o típico monge budista pacífico, crente, demasiado inocente e amigável. Mantinha o seu pequeno templo, com uma pequena comunidade de crianças, órfãs, as quais estavam a seguir o caminho de Buda, passo a passo, guiados por Anji. Anji dependia neles para a sua salvação, ou seja, dependia no trabalho de doutrinação para a sua salvação, e as crianças dependiam dele para a sua segurança. Até que as perseguições budistas por parte do governo de Meiji chegaram à região. E, precisamente na noite em que uma das crianças promete segui-lo e estar ao lado dele sempre, mesmo que ao crescer a sua vida mude de rumo, Anji regressa ao templo depois de um passeio de meditação e encontra-o em chamas. É aqui que começa a questionar as suas crenças, a sua salvação e os ensinamentos que sempre seguiu. Não nega a religião que sempre seguiu, mas cria outros significados para as doutrinas defendidas pelo Budismo. Afirma que o caminho para a salvação não é a meditação, mas sim a destruição. Que apenas destruindo e castigando aquilo e aqueles responsáveis pelo massacre das crianças que protegia conseguia encontrar a paz que procurou toda a vida. E, talvez por isso, se tenha juntado a um grupo de criminosos ou, dizendo de modo mais suave, de inconformados com o governo Meiji; porque através de Shishio conseguia derrubar o governo que julgava opressor e responsável por tudo e, após essa vitória, renunciaria a qualquer tipo de violência pois teria alcançado a salvação. Gosto particularmente do facto de Anji andar sempre com as pequenas tábuas fúnebres das crianças à cintura. Foi uma dessas tábuas que o salvou de um golpe quase mortal de Sanosuke. E foi preciso uma dessas tábuas estar molhada do seu sangue para Anji se aperceber que a última coisa que as crianças queriam era vê-lo contradizer todas as suas crenças e cometer actos de violência extrema em seu nome.
Watsuki parece defender a ideia de que vingar aqueles que morrem não é correcto; que os que morrem nunca desejariam ver as nossas mãos manchadas de sangue, mesmo sendo o sangue daqueles responsáveis pela sua morte. Faz sentido. Vingarmos alguém que amámos e que foi morto, quer justamente, quer injustamente (embora aos nossos olhos seja sempre injustamente), só nos prejudica a vida futura: temos que pagar as devidas consequências por esse nosso acto, e temos toda a nossa vida arruinada. Ninguém que nos tenha amado e que tenha partido desejaria esse tipo de futuro para nós. E é isso que, tanto no caso de Anji, como no caso de Eiji, o rapaz da aldeia abandonada, como no caso de Sanosuke, no início da série, concluem, através de Kenshin, claro, moralista em acção como sempre.
Também é engraçado ver como os duelos com os membros do Juppongatana (excluindo os duelos na Ayoia) são entre personagens com passados semelhantes, com morais semelhantes. Anji e Sanosuke não tiveram o mesmo género de passado, mas detestam o governo Meiji devido às pessoas que matou em nome do tal “futuro melhor”. Saito e Usui são ambos personagens complexos, que não olham a meios nem a morais para matar o adversário. Kenshin e Soujirou tiveram uma infância semelhante, cheia de morte, medo e ameaças; embora tenham enveredado por caminhos diferentes, Soujirou, no fim, revela ter potencial para se tornar tão bom ou melhor que Kenshin, a nível de moral.
O personagem que mais me comove, que mais me impressiona e com o qual me liguei de imediato (fora Kenshin e aquele passado absolutamente traumático) é, sem dúvida, Soujirou Seta. Não existe personagem mais complexo, mais difícil de descortinar e que, ao mesmo tempo, nos inspire um enorme sentimento de pena do que ele. A não ser, como já disse, Kenshin nas OVA’s iniciais. Quando conhecemos Soujirou, ele é um dos homens mais próximos de Shishio. O que está imediatamente atrás dele quer em nível de importância quer no próprio Juppongatana. Não sabemos nem porquê, nem o que está por trás daquela relação tão próxima, nem porque é que Soujirou está sempre a sorrir com um olhar tão frio. Porque é que matar para ele é uma tarefa tão simples e isenta de qualquer sentimento. Porque é que não sente nada, nem de positivo nem de negativo. Porque é que aquela devoção e confiança em Shishio são tão fortes, nem de onde vem aquela confiança que Shishio o protegerá independentemente do que acontecer - até dos próprios membros do Juppongatana. Soujirou é tal qual o conhecemos até ao momento em que mata Senkaku, um personagem derrotado por Kenshin mas a quem este mostra mesericórdia. Depois deste confronto, Soujirou diz que Senkaku começou a falar de “coisas estranhas” como misericórdia, como não matar ser uma coisa honrosa. Não consegue compreender como é que não matar consegue trazer a alguém mérito. Matar sempre foi algo inerente ao seu carácter, algo que lhe foi incutido desde muito pequeno, desde os oito anos. Não matar é, aos seus olhos, sinal de fraqueza. Isto porque a sua moral se rege a partir do que ele julga ser uma verdade, que lhe foi ensinada por Shishio: “Só os mais fortes sobrevivem. Os mais fracos, morrem.” Tão simples quanto isso. Contudo, aquela última conversa com Senkaku aguçou-lhe uma curiosidade que ele nunca tinha sentido em falar com Kenshin, ou, pelo menos, estar com ele frente-a-frente para ouvir aquelas palavras ditas por ele. Encontramos Soujirou completamente preparado para o confronto, com todas as técnicas no bolso (Tenken, Shikuchi e a última a qual não me lembro o nome mas que é o resultado da mistura das outras duas) e com um único propósito: matar Kenshin. Não só por ser essa a sua missão, como também para calar aquela voz que acredita em coisas como não matar como forma de sobrevivência. Não só porque não consegue entender essa máxima, como também uma pequena voz de esperança que tinha estado calada durante dez anos se começa a insurgir. Ao longo da batalha, a sua cabeça enche-se de imagens do seu passado, da sua história. Lembra-se sobretudo da conversa de Senkaku, quando este lhe disse como Kenshin usava a sua técnica para proteger os mais fracos. Que proteger os mais fracos? Os mais fracos morrem. Os mais fortes sobrevivem. A sua convicção e a sua mente ficam cada vez mais distantes do sítio onde está, vagueiam cada vez mais, e os seus gestos e tácticas vão sendo cada vez mais fáceis de contornar - vantajoso para Kenshin, porque se Sourjirou não estivesse a enfrentar o dilema psicológico que o tomou por completo, não tinha qualquer hipótese. A sandália de Soujirou quebra, e usa isso como desculpa para pôr as ideias em ordem. Sempre com um sorriso nos lábios. Embora, por detrás desse sorriso, em vez de estar um ser humano glaciar, começa a aparecer a criança de oito anos assustada numa noite de trovoada. Começa então o flashback.
Soujirou Seta tinha apenas oito anos quando conheceu Shishio Makoto. Filho bastardo de um negociante de arroz, já morto, vive com os meios-irmãos, agora encarregues do negócio, que o maltratam até não poderem mais. Explorado a nível de trabalho e abusado a nível de violência, Soujirou enfrenta as situações mais delicadas com um sorriso. Até que um dia, após carregar uma quantidade absurda de sacas de arroz para o armazém da família, ouve gritos e o barulho de uma espada. Corre, aflito, para o local de onde o barulho provém e encontra um homem alto, completamente envolto em ligaduras, a esquartejar três homens que o estavam a querer apanhar, ou atacar, não se sabe ao certo. Soujirou encolhe-se de medo perante a cena, tenta fugir, mas o homem, Shishio, dá pela sua presença. Ergue a espada para o silenciar, mas é impedido pela expressão que vê no rosto da criança: alegria. Ao sentir que todo o seu sofrimento estava prestes a acabar, Soujirou não sentia mais nada a não ser uma alegria extrema, uma felicidade enorme em ser morto. É o que faz recuar Shishio. Estranha aquela reacção. Pede a Soujirou ligaduras e alimento e nada mais. Soujirou sente medo e, ao mesmo tempo, fascínio por aquele homem mais velho que mostrou piedade e, acima de tudo, simpatia. Nunca teve ninguém que falasse com ele de igual para igual; ninguém que falasse com ele de igual para igual e forte, ao mesmo tempo, o que significa que o poderia proteger em qualquer situação. Pergunta a Shishio se é um homem mau. Shishio responde que não é bem um homem mau, mas sim um homem traído que procura vingança. Soujirou pergunta se é, então, um homem bom. Shishio responde prontamente que não. Soujirou conclui que Shishio é um homem mau, mas um homem mau extremamente forte, o que lhe causa admiração. Penso que, no caso de Soujirou, o ser um homem bom ou mau não importava, desde que tivesse força suficiente para o proteger e servisse de modelo, de figura parental. Shishio pergunta-lhe porque é que está sempre a sorrir. Soujirou responde que antigamente não era assim. Que quando o espancavam, ou quando pediam demasiado dele a nível físico, chorava, mas que isso apenas enfurecia mais os irmãos, que o consideravam egoísta e mal-agradecido. Era ainda mais espancado como consequência das suas lágrimas. Então, passou a sorrir. O seu sorriso enfurecia tanto os irmãos, que sentiam que o castigo não produzia efeito e paravam. Que por mais que lhe doa, que por mais infeliz que se sinta, passou sempre a sorrir. É então que Shishio lhe diz que a lei universal de tudo é a sobrevivência dos mais fortes. Que os mais fracos morrem. Os mais fortes sobrevivem. Para Soujirou, um dos “fracos”, conseguir fazer frente aos mais “fortes” - os seus meio-irmãos - Shishio oferece-lhe uma espada. Intimidado com o poder do que lhe foi oferecido, Soujirou retira-se. Começa a trovejar. Soujirou abriga-se da chuva, ainda com a espada na mão, e começa a pensar sobre o que Shishio lhe tem dito. Na sua inocência de criança, chega à conclusão que ser morto por um golpe de espada deve doer imenso; e que, para dor, já lhe bastam os espancamentos quase diários. Conclui que ser fraco não deve ser assim tão mau. No preciso momento em que se levanta para devolver a espada, é chamado pelos irmãos, que descobriram que Soujirou estava a encobrir uma pessoa procurada pela polícia. Alegando estarem fartos daquele fardo, e sonhando com a recompensa por terem encontrado e morto alguém que estava aliado a um foragido, preparam-se para o matar. Espancam-no, e, no preciso momento em que tentam golpeá-lo, Soujirou levanta-se e corre o mais depressa que pode, no meio de uma trovoada intensa, a gritar, suplicar por ajuda. Ninguém o acorre. Sozinho, completamente sozinho, e à beira da morte, esconde-se. Um dos irmãos dá com ele. Passado um segundo, ouve-se um grito lacinante e a cabeça do irmão aparece aos restantes. Apavorados, nem se dão conta que Soujirou apareceu por trás dele empunhando uma espada e são mortos a sangue-frio. Shishio aparece. Encontra Soujirou estático, de espada a pingar sangue na mão. Pergunta-lhe se está a chorar. Soujirou não responde, olha para o céu cinzento, gotas de chuva a escorrerem pelas faces e encara Shishio com o seu sorriso frio. Não, não está a chorar.
A acção presente é retomada. Soujirou está pronto para continuar o combate, mas Kenshin nota que algo se está a passar na sua mente. Nota algo nos seus olhos que não estava lá anteriormente: raiva. Uma emoção. Algo novo para Soujirou, que as empurrou para o subconsciente durante dez anos. Ao atacar Kenshin, Soujirou volta a pensar em tudo o que Senkaku lhe disse e naquilo que o próprio Kenshin lhe tinha vindo a dizer. Nega tudo. A derradeira verdade é que os mais fortes vivem e os mais fracos morrem. A protecção dos mais fracos não existe. Não matar não faz sentido. Se realmente se protegessem os mais fracos, porque é que ninguém o protegeu a ele quando, naquela Terça-feira de trovoada, ele correu e suplicou por ajuda? Grita isto a Kenshin durante um ataque. Kenshin fica imóvel, estupefacto. Como é que o podia ajudar se nunca o tinha conhecido senão naquele contexto? Mas então tudo se torna claro. Soujirou conheceu Shishio numa altura em que estava a precisar de acreditar em algo e, sobretudo, de conhecer alguém que se preocupasse com ele. Shishio não o matou, mostrou-se misericordioso. Ensinou-lhe que os mais fortes sobreviviam e os mais fracos morriam - embora não seja correcto, sempre era uma verdade, e Soujirou agarrou-se a ela com unhas e dentes. Todos sabemos que há momentos nas nossas vidas em que tudo nos parece tão triste, tão esmagador, que nos agarramos à mínima coisa que nos dizem que nos possa parecer uma salvação possível. Mesmo não sendo o caminho certo. E agora ali estava um homem que negava tudo o que Shishio lhe ensinara, cujas teorias se assemelhavam bastante às que Soujirou tinha antes de chacinar a família como auto-defesa. Kenshin diz a Soujirou que, se o que ele diz, faz e pensa o afecta daquela maneira, é porque, de início, Soujirou nunca desejou para ele a vida de um assassino. Soujirou pára. A gota de água é quando volta à noite de trovoada e se lembra: os mais fortes sobrevivem e os mais fracos morrem, é verdade. Mas a verdade é que, naquela noite de chuva, ele estava mesmo a chorar. Algo quebra na psique de Soujirou. Uma batalha entre o bem e o mal, entre algo em que acreditou durante dez anos mas que, no início, não se adaptava à maneira de pensar dele. O ter conhecido a pessoa errada na altura mais errada possível. Os dez anos de mentira, a enganar-se a ele próprio. E aquele homem que estava ali, à sua frente, que não se cala, que adora o som da sua própria voz, e que só o perturba. O confronto entre a verdade defendida por Shishio e a verdade defendida por Kenshin é evidente. Não sabe em que acreditar. Tenta um último ataque. Se Kenshin vencer, então é ele que tem razão, e Soujirou viveu dez anos da sua vida a viver algo que nunca desejou para si em criança. Mas que nunca soube que nunca o tinha desejado, pois todas as emoções, reflexões estavam seladas no subconsciente. Soujirou era feito de gelo. Kenshin vence, e Soujirou é derrotado, quer fisicamente, quer psicologicamente. Pergunta então a Kenshin qual era a verdade defendida por ele. Precisa de algo novo em que acreditar, pois se aquilo em que acreditou durante dez anos era errado, então qual é o caminho certo? Kenshin responde-lhe que ninguém lho pode dizer; que é ele próprio que tem que descobrir a sua própria verdade e não se guiar nunca pela verdade dos outros. Que tem que procurar dentro dele e nos outros. Como ele fez durante dez anos, enquanto vagueava sem destino pelo Japão. Soujirou percebe, concorda, e os dois despedem-se silenciosamente, para nunca mais se voltarem a ver. Yumi pergunta se está tudo bem com ele. Soujirou responde-lhe isto: que quando um prédio foi mal construído e precisa de ser refeito, tem que destruir tudo e recomeçar do zero. É o que ele pretende fazer. Pede a Yumi para devolver a espada que Shishio lhe ofereceu quando tinha oito anos, a qual guardou como o seu bem mais precioso durante anos, e parte. Tudo acaba com Soujirou a chorar, passados dez anos. Como na noite de trovoada em que parte do seu destino ficou traçado. Mais tarde, vimos Soujirou a seguir as pisadas de Kenshin na procura do caminho certo e duma verdade que se ajuste à vida que quer para ele… e também a procura dessa mesma vida.
Outra das características de Watsuki é o enaltecimento do amor. Mas não um amor feliz; um amor paciente, sujeito a todo o tipo de sacrifícios e manifestações. Temos, para o efeito, Kaoru Kamiya, Megumi Takani, Misao Makimachi, Yumi e Kamatari. Para não falar em Tomoe, mas como Tomoe não figura na série propriamente dita, faz parte do passado de Kenshin, não falarei nela, embora seja outra personagem que admire. O amor de Kaoru por Kenshin ultrapassa tudo e todos. Está sempre com ele quando ele precisa, vai até Kyoto só com o propósito de o ver, nem precisa falar, só vê-lo mais uma vez e espera. Espera o tempo que for preciso. Megumi também sente o mesmo tipo de sentimento por Kenshin, embora neste caso pense que seja mais um facto de gratidão do que propriamente amor. Kenshin devolveu-lhe a integridade e a honra que tinha perdido. Qualquer mulher se sente abalada com isso. Mas sabe que, com Kaoru, não tem hipótese possível e resigna-se à sua condição de incorrespondida. Em Kaoru, Kenshin vê um futuro que durante muito julgou perdido e, mais que tudo, uma casa, algo que procurou durante dez anos. Kaoru simboliza a esperança, a vida que Kenshin julgou morta depois do fim trágico de Tomoe e da Revolução. No caso de Misao, é coragem: viajou por todo o Japão à procura de um homem que nem sabia se estava vivo ou morto. A sua procura por Aoshi e a sua inocência em pensar que ele ainda continuava o mesmo de sempre levam-na a sentir um abalo bastante forte. Mas nunca perde a esperança de ter o Aoshi antigo de volta. Que, de facto, volta a ter. Kamatari faz todos os possíveis para substituir Soujirou como braço direito de Shishi, daí a sua derrota na Aoyia ser ainda mais penosa do que para os restantes Juppongatana. Quanto a Yumi, é a verdadeira sacrificada. Tenta proteger Shishio cegamente. Sugere a Kenshin e a Sanosuke irem-se embora antes de lutarem com ele, submetendo-se às consequências que isso implicaria, só para não correr o risco de perder Shishio. E, quando vê que o tempo limite de Shishio está a ser ultrapassado, põe-se à frente deste e Kenshin. Shishio não pensa duas vezes: o sacrifício e amor que ela sente por ele são-lhe indiferentes, e trespassa-a com um duro golpe de espada. A reacção de Kenshin é algo de incompreensível para aqueles que não conhecem a história com Tomoe, mas talvez naquele momento tenha visto aquele preciso momento do seu passado revisitado mesmo à sua frente. O seu ódio por Shishio cresce ainda mais. Mas Yumi morre feliz, segundo diz, pois morreu a proteger aquele que amava. E nada lhe podia tirar esse sentimento de sacrifício.
Resumindo, mais que uma série de animação e de luta, Rurouni Kenshin é uma série humana. Mais humana do que a maioria. Os verdadeiros conflitos não são físicos, mas sim psicológicos. Todos os personagens têm um qualquer tipo de luta interior que os faz agir como agem. Os casos que mencionei são apenas alguns dos muitos que vão aparecendo ao longo da série (embora depois da temporada de Kyoto a série vá perdendo interesse progressivamente - em vez de inventarem, os responsáveis pela animação deviam ter prosseguido imediatamente para a Jinchuu), são os que mais me chamaram à atenção. Personagens que mais me marcam? Soujirou Seta, Kenshin Himura, Kaoru Kamiya. Mas, no geral, todos têm uma ou outra característica com a qual concordo, se não com a qual me identifico. Quando Soujirou fala no prédio que, para ser emendado, tem que ser destruído e construído do zero, por exemplo. Não me surpreende que a série não tenha ganho a aderência das faixas etárias mais jovens. Nenhum tem super poderes nem nuvens mágicas. São apenas humanos. Com os seus traumas, com as suas falhas, com os seus dilemas psicológicos e as suas personalidades afectadas.