Crónica de Lüger ao vivo ou a banda sonora do Morvern Callar em Madrid

Apr 10, 2011 14:37




Os Lüger bateram-me há coisa de um ano - ainda eu andava em pleno centro da meseta ibérica - naquele tal festival Space is the Place, com os Öm e os Acid Mothers Temple como cabeças de cartaz. Pois se os Öm pude repetir há uns meses aqui mesmo na ZdB, já para os Lüger decidi meter-me à estrada (ou ao céu) até Madrid. Há gente a quem tudo isto parece coisa do outro mundo porque aparentemente é muito dinheiro e tempo investido “só” para um concerto, mas se fosse para ver uns Motorhead já provavelmente ninguém estanhava. Pois, os Lüger (ainda!) não saem em capas de revista, mas não é por aí que a minha escala de admiração por um grupo se regula. Há essencialmente a música (aquela que tanto me falta em Lisboa), e por detrás disso há ainda personalidades e uma forte ligação emocional a Madrid. Também a curiosidade de finalmente os ver com o Edu na formação e escutar em avanço as novas músicas. E claro, de conhecer o pessoal que quero apoiar.
Pronto, razões mais que suficientes para chegar quinta-feira ao fim da tarde e partir doze horas depois. Contextualização feita.

Apesar de um atribulado começo de dia, nada demove o meu entusiasmo ao chegar à minha segunda cidade natal. Ida directa à Commercial Records do Nacho para assegurar o meu bilhete, breve converseta melómana, visita das capelinhas por Malasaña (Cuervo Store e mais uns botins no Tito que afinal ainda mantém a sua The The) e encontro-me com a Maria em sua casa. Pouco tempo faltava para ir ter novamente com o Nacho a levantar o bilhete, mas o suficiente para convencer a Maria a ir comigo. «Ya Maria, os gajos que abriram para BRMC, ‘bora lá».
A Nuria com o voo em atraso acaba por não vir (lá se foi mais uma oportunidade de se fazerem umas boas fotos), de modo que fazemos as duas o reconhecimento do terreno: a sala Ramdall, aparentemente um club de salsa e afins. Os Lüger são uns gajos de mente aberta, ah pois. Ora, nove da noite é habitualmente cedíssimo nesta cidade, pelo que toca de beber um vinhito para ligar os motores. Não nos apercebemos contudo é que desta feita o horário marcado era mesmo para cumprir (havia que dar lugar aos salseros!), e acabámos por perder mais uma ocasião de ver os Ginferno ao vivo.

Entramos na sala e já está parte dos Lüger no palco. Bué gente: quase que tive dificuldade em chegar lá à frente. É bonito ver isto. Tomem lá para aqueles que dizem que os Lüger são pequenos. Num ano lançam e esgotam em vinil de edição limitada o seu primeiro disco (download grátis na net), trocam de vocalista e guitarrista, entra o Edu da Giradiscos que já era da família, tocam com grupos como deve ser (além do supra mencionado festival e dos BRMC , leia-se também Cave, por exemplo) e chegam aos EUA. Ao SXSW mais particularmente, e depois à restante costa leste (NY, Washington, etc.). Repito, é bonito ver isto - contenho a lagrimita.

Ora então em palco estavam já a bela da Orange, claro, o Mario (teclista) e o Daniel (baixista e agora vocalista) sentado no chão, em jeito hippie-zen, com um sitar em riste. Eis uma novidade, o ênfase neste instrumento. Gosto. Cria-se o ambiente inicial (gentes do Ramdall, uma nota: havia imensa luz, concertos destes são para fazer quase às escuras, sff) e eu questiono-me se eles se terão de facto afastado do rock mais “convencional”, vocábulo que viria a ouvir nessa mesma noite.
Não, nada disso, já veremos adiante. Dado o início da eucaristia, levanta-se o Daniel, arruma o sitar substituído pelo baixo, e vão subindo os restantes membros: dois elementos para a percussão (nota para o baterista que envergava uma t-shirt de Moon Duo, olha a dica!) e mais um para as cordas - guitarra.

Amig@s, quem ouviu o álbum não espere ouvir o mesmo ao vivo. Os Lüger não são profissionais atados de criatividade e evolução, felizmente. O que já existia foi reinventado e o que foi entretanto criado não são somente variações mas sim incursões por campos sonoros vizinhos. E, ao contrário da minha primeira impressão naquela noite, há uma exploração mais clara do rock (agradeço-lhes a sobriedade que tiveram em não cair no facilitismo da distinção pseudo-erudita do “experimentalismo”), que passou de acessório a estrutura, pese embora não seja ainda suficiente para os categorizar mais obviamente apenas enquanto isso. Lo siento, continuo sem conseguir defini-los. Os Lüger combinam sonoridades bem familiares, mas que usualmente não se encontram juntas. Não soam, contudo, a freaks nem a tipos armados em génios visionários.

Se antes me pareciam donos de um space rock mais orgânico, desta feita (e talvez esta seja uma impressão muito mais viva em concerto) sobressaiu o poder maquinal da percussão - o que aparentemente contradiz o enfoque no rock, mas olhem que não, olhem que não. A revolução industrial, a mecanicidade introduzida pelo Homem mas perpetuada pela máquina até à total perda de controlo humano, o hipnotismo promovido pelo movimento constante, a subida a uma carruagem do comboio que já não guiamos mas tão-só incorporamos, ora num acelerado travelling de cena de fuga-perseguição, ora num tranquilo passeio de contemplação.
Mas esta é apenas uma parcela da equação lügeriana. A este “industrialismo” junte-se-lhe a pitada de rock impresso por uma guitarra versátil que tanto sabe assumir o papel principal e fazer dos seus riffs os protagonistas do episódio (especialmente nas novas composições), como manter-se algo à margem e apenas acompanhar quase desapercebidamente o brilho dos demais instrumentos.
Finalmente, adicione-se ainda a vertente cósmica que lhe é dotada pelo trabalho das teclas e pelas vocalizações agora mais diluídas, talvez para salvaguarda do vocalista que não era vocalista, ou talvez porque tenham consolidado que a voz é mais um acessório do que um elemento chave da sua música - ou assim penso eu. Especialmente neste domínio atingem-se com frequência momentos planadores soberanos, à la Broadcast (RIP Trish) meets Can - e apesar da lei da proibição do fumo em Espanha já estar notavelmente em vigor, denotou-se sem margem para engano uns cheiros de algo que não era tabaco na atmosfera da Ramdall...

Durante toda uma actuação baseada num balanço entre novas canções e outras já incluídas no primeiro álbum, terminou-se a missa com a Swastika Sweetheart, algo retrabalhada, mas perfeitamente reconhecível. De fora do reportório conhecido ficou a Why Should I Care?, aquela que parece ter sido destinada a ser conotada como “a-canção-fácil” dos Lüger dos 3 R’s rock-riff-refrão. Tipo a que seria o hit single para a editora capitalista. Alinhamento de afirmação? Na minha modesta opinião não precisavam, nós já sabemos que vocês são mais que isso, ainda que este “isso” seja de qualidade, pelo que não há que renegá-lo.

(Para algumas fotos, vejam a galeria Flickr do Feiticeira)

Os Lüger são portanto como um quinteto de jazz-rock comunista: jogam em equipa e têm o luxo de nos presentearem também com um time share de cada membro, sempre sem domínio de qualquer das partes. Não há cá estrelas, mas sim um verdadeiro trabalho de conjunto e de reconhecimento.

Além, obviamente, da música, o que me faz gostar mesmo dos Lüger é precisamente esta atitude de paixão desprendida por tocar, sem qualquer sobranceria. São músicos que se tomam a sério, mas não demasiado (deliro com as entrevistas), com uma humildade equilibrada que os ajuda a manter uma criação artística fiel aos seus intuitos, sem influência nem mácula dos media, embora tão-pouco vivam afastados da sua realidade e da daqueles que os apoiam e acompanham. Talvez por serem tipos que andam na música (não só a tocar, mas a organizar concertos e promover outras bandas) há já bastante tempo e por conhecerem bem os percursos, os erros comuns, a realidade de todo esse mundo, tiveram a clarividência de não deixarem de ser quem eram.

Em tom bastante pessoal, a verdade é que há pessoas que podem não mudar a nossa vida, mas ainda assim exercer uma forte influência ou importância num determinado momento ao contagiar-nos com o seu brilho. Fazem-nos querer fazer coisas. Fazem-nos vislumbrar a magia das relações e da criaçao humanas. Dos elos e da realização pessoal. Tudo através de um regresso à simplicidade e ambição humilde, por mais paradoxal que isto possa soar.
Eu conheci os Lüger e gostei da música deles. Depois gostei da estética em que se inseriam, apesar de esta não me ser grandemente familiar - e talvez por isso sempre tenha tido alguma dificuldade em encontrar neles aquelas referências "claríssimas" apontadas por todo o crítico e pseudo crítico musical.
Também não conhecia pessoalmente o Edu. Sabia da existência da Giradiscos porque era a fonte de quase todos os concertos de bandas que eu gostava em Madrid - e de outras tantas que passei a gostar porque comecei a confiar intuitivamente na sua programação.
E com esta visita a Madrid a ideia que tinha construído unilateralmente sobre os Lüger, enquanto banda e enquanto grupo humano, ganhou uma sustentação real. O gosto estético tornou-se numa admiração muito mais abrangente. Basicamente apaixonei-me por aquelas pessoas. Pela sua intensidade e entrega. Pela sua honestidade e humanidade. Por me provarem que há gente comum exemplar, com os mesmos interesses que eu, e que me fazem querer agir e produzir.

música

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