Jan 06, 2006 00:37
Às vezes eu me pergunto o que aconteceria se, em um belo
dia de sol, com crianças brincando pelas ruas, pássaros voando livremente, e
mulheres cantarolando e batendo tapetes nas janelas de suas casas no segundo
andar, eu resolvesse sair de casa.
Da janela, posso ouvir várias espécies de boatos. Dizem
que sou uma viúva reprimida, ou uma velha bruxa enfurnada em meus feitiços para
atrair todos os homens que baterem à minha porta, ou mesmo uma rameira
ambiciosa que vive vigiando a rua, à procura de cafetões bem postos, daqueles
que usam chapéu-coco e bengala e estão sempre dispostos a sustentar suas
cortesãs de grande valia. Tudo isso apenas por um “Não perturbe” na porta de
meu apartamento, no velho cortiço(velho sim, porém extremamente aconchegante, e
do jeito que pedi a Alá). E também pelo fato de eu telefonar para os
estabelecimentos sempre que preciso de mantimentos. Problemas domésticos, como
consertar o vazamento na pia do banheiro ou martelar uma prateleira que
rebentou, eu aprendi a fazer ainda em minha meninice. De fato, eu gostava de
viver sozinha. Minha companhia principal era eu mesma, e meus melhores amigos
possuíam páginas cobertas de letras, que formavam palavras. Não precisava de
homens para me dar prazer. Experimentei o sexo uma vez na vida, com o homem que
até então era considerado o melhor nesse assunto. Experimentei não por
experimentar, e sim para sentir como era, e como eu poderia usufruir do mesmo
prazer sozinha. E de fato, consegui(aqui eu dou um sorriso de satisfação ao
lembrar de minhas noites de explêndido prazer comigo mesma, após escrever um
romance erótico).
Pois bem, eu imagino o que aconteceria se algum dia, a
viúva, bruxa e rameira(preciso ressaltar que nenhuma alma com uma cultura
bondosa tenha lembrado de que existem ermitões) saísse de casa.
Eu imagino que, para começo de conversa, nada mais normal
que a rua inteira parar para ver quem passa. E, após um moleque de mais ou
menos dezesseis anos de idade ver a minha porta aberta e sair contando a todos
que a bruxa saíra de casa, todos iriam começar a cochichar enquanto eu passo.
Eu andaria normalmente, pararia em frente ao carrinho de pipoca e compraria um
saquinho. Sentaria no banco do parque para observar os pássaros, e, por volta
do meio-dia, entraria no restaurante para almoçar.
E qual surpresa seria se algo absurdamente estranho não
acontecesse durante minha estadia no estabelecimento. Imagino-me sentada à
mesa; um garçom me oferecendo o cardápio e recomendando vitela ao molho de
alcaparras, e, quando meu pedido chegasse, eu encontraria no prato nada mais
nada menos que uma pasta marrom com umas gotas verdes em cima. Nutrisse, eu leria na plaqueta do balcão principal do
restaurante. E, enquanto eu saboreio minha “deliciosa vitela”, bem à minha
frente, um pouco mais à direita, perto da cozinha, aconteceria uma explosão que
devastaria no máximo umas quatro mesas a nordeste da minha. Na verdade, eu não
me surpreenderia nem um pouco. Simplesmente continuaria a comer minha “vitela”,
vendo o tumulto bem à frente, e pensando no que poderia escrever com isso.
E a culpa da explosão, recairia sobre quem? Obviamente, na
viúva bruxa rameira! E a minha vontade seria de ir para o meio da rua e gritar
que eu sou apenas uma escritora solitária, que vive em paz em seu canto, e que
nunca fez nada que possa prejudicar ninguém ali naquela cidade. E bem nesse
exato momento eu pararia para refletir se eu realmente nunca fiz algo de errado
ali. Eis o que seria meu pensamento: “Tem aquela vez que eu deixei óleo de
cozinha pelo chão do corredor dos apartamentos...Ah, mas aquilo foi um
acidente, ninguém poderia prever que o entregador do mercado iria deixar as
compras bem no vão da porta, fazendo com que quando eu abrisse, o vidro de óleo
caísse no chão e se espalhasse, me dando uma preguiça imensa de limpar só de
ver o óleo escorrendo. Ah, e eu também não poderia prever que esse óleo que
estava escorrendo fosse cair justo na cabeça da Dona Mercedes, que tinha
acabado de voltar do barbeiro, com um cabelo extremamente cacheado e volumoso,
para o casamento de sua sobrinha, no cortiço vizinho. Ah, e tem aquela vez que
eu provoquei medo no cortiço inteiro, ao trocar uma lâmpada que estava em
curto, com o interruptor ligado...Todas as lâmpadas apagaram ao mesmo tempo,
provocando pânico geral. Mas isso também foi desproposital.” E, após refletir,
eu repetiria em alto e bom som: “É! Eu nunca fiz nada prejudicial a nenhum de
vocês!” E a Dona Mercedez, que me odeia mais que ratos e baratas, diria: “E
aquela vez em que houve um estrondo gigante, como se fosse um trovão, bem no
meio do cortiço, que fez com que o chão desse uma tremida e as luzes se
apagassem?” E seu marido responderia: “Queria, fique quieta. Aquilo era um
raio, que caiu no pátio do cortiço.”
Então, eu voltaria para casa, sem nem um pingo de
esperança de que algum dia eu pudesse sair à rua sem que houvesse todo esse
tumulto. Esquentaria água para o chá, tomaria um banho, e voltaria a fazer o
que eu sempre faço: escrever romances eróticos.
Gostei mais desse que do outro. ^^
desventuras parte 2